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"SEMPRE TIVEMOS VOZ", MULHERES QUE CANTAM CARUARU

  • Foto do escritor: ccaroaportal
    ccaroaportal
  • 19 de out. de 2022
  • 6 min de leitura

Atualizado: 24 de out. de 2022

Na cidade apelidada como a Princesa do Agreste, impera a invisibilização feminina


Numa pesquisa rápida sobre “Música em Caruaru” em qualquer ferramenta de busca on-line, a primeira página é uma sequência de homens que marcaram o forró da localidade. Entre links para letras que citam a cidade em seus versos e “20 canções que ajudam a contar a história da cidade” passa quase despercebida a ausência de mulheres cantoras na lista. Quase porque o cenário artístico local é composto por muitas mulheres. Para esta reportagem, conversamos com quatro delas. De gerações e ritmos diferentes, Marlene do Forró, Isabela Moraes, Gabi da Pele Preta e Bianca Mota carregam juntas o amor pela música.


Marlene se senta diante da câmera com uma simpatia que não poderia ser ensaiada. É natural a ela o ciclo de ajeitar o cabelo, sorrir para o entrevistador e pôr-se a repetir histórias que já não são apenas dela, são três décadas da história de uma cidade inteira. Marlene Maria Muniz — a Marlene do Forró — põe a música acima de qualquer outro título ou sobrenome que traz consigo. Ela, assim como as nossas entrevistadas, dá voz aos tons da vida local em timbre, altura e intensidade. Não há como entender a essência de Caruaru de verdade sem conhecer as mulheres que a cantam.


Marlene do Forró durante entrevista. Foto: Lucas Bezerra.

Olhar o passado é um exercício necessário para manter viva no futuro a memória de quem veio primeiro, como uma melodia que aprendemos enquanto crianças e que nunca esquecemos. Marlene do Forró aparece nesta reportagem também a partir de Gabi da Pele Preta, artista “agrestina caruaruense”, como ela mesma se autodescreve. Gabi falava sobre suas referências musicais. “Marlene é um dos nomes que abriram as portas para a gente que é cantora aqui em Caruaru”, disse Gabi e questionou: “Por que ela sempre se apresenta em palcos precarizados?”


Infelizmente, Marlene está muito longe de ser a única nesse dilema: se no São João, época em que a cidade fervilha de gente interessada em forró, a música local é restrita a pouquíssimos artistas, no resto do ano, a situação é bem mais complicada. “É difícil porque a carreira artística não é fácil”, fala Marlene sobre a cena atual de música em Caruaru. “Não somos reconhecidos. São muitos artistas bons que são excluídos, mas temos que segurar essa bandeira porque nós temos que representar a nossa querida Caruaru", diz. Marlene tem orgulho de fazer parte do celeiro de artistas de Caruaru, mas também critica a falta de valorização artística.


“Para nós, artistas que representamos o forró, é difícil passar o ano todo dependendo de uma festa que acontece uma vez por ano”, fala Marlene. “Já que a cultura que rende, em Caruaru, era para representar a gente o ano todo, para gente trabalhar o ano todo”, desabafa. “Se um turista vem hoje à Caruaru, ele não vai encontrar uma casa de show porque não tem. Pra ser a capital do Forró era pra ter forró o ano todo”, questiona Marlene e chama a atenção para uma questão recorrente. “Qual o futuro das culturas ditas populares? O esquecimento? E os artistas, como garantem o seu sustento?”


No forró Marlene é um legado de resistência, muito como o qu Gabi tem construído ao consolidar verso a verso sua voz no cenário da chamada nova MPB nacional. Mulher, negra, artista e nordestina: traços que compõem sua personalidade, mas não a reduzem, e sim engrossam o caldo de originalidade que transborda de suas composições afiadas. Em sua série de performances ao redor do Brasil como convidada do grupo Cordel do Fogo Encantado, que reúne poesia, teatro e literatura há 20 anos, a cantora de 37 anos testemunha preconceitos milenares. “Qual é a surpresa das pessoas ao nos verem fazendo música boa, bem arranjada, bem composta, bem executada. Qual é a surpresa?”, fala Gabi sobre a xenofobia que sofreu quando foi cantar fora do Nordeste. E com o sorriso de quem perdoa a ignorância, adiciona: “Aqui se é tão adepto a receber as pessoas, a acolher as diferenças, mas quando sai tem todo esse choque. Aí a gente faz essa cara bonita que a gente tem e diz “Vai lá ver!”


Gabi da Pele Preta durante entrevista. Foto: Fabrício Magno.

Quem seguir o conselho de Gabi, seja de onde for, vai encontrar o melhor da cultura local reproduzido na arte das princesas do Agreste. Marlene é porta-voz do passado dos livros e do que só vive na memória popular, mesmo sentindo por vezes que é uma luta ingrata. No cemitério Dom Bosco, onde trabalha alguns dias por semana, jazem figuras de renome da cidade, mas ela se recusa a deixar o histórico musical morrer. “Muitos artistas bons são excluídos, mas temos que segurar essa bandeira porque nós temos que representar a nossa querida Caruaru. Tenho orgulho de fazer parte do celeiro de artistas daqui.”.


Resistir: conservar-se firme, não sucumbir, não ceder. Resistir pode ser defender a unhas e dentes o lugar que te viu nascer, mesmo que nem sempre retribua seu abraço. Resistir pode ser manter acesa sua paixão ainda que o cotidiano tente diminuí-la a um hobby. Resistir é bradar em alto e bom som a quem quiser ouvir ou não, que sempre tivemos voz.


Outra artista que também resiste apesar das dificuldades do caminho da música para as mulheres no Agreste pernambucano é Isabela Moraes. “Quando a música surgiu em mim, as cantoras que eu via eram apenas pela televisão, a Gal Costa, Maria Betânia, Amelinha”, disse a cantora Isabela Moraes no camarim do Teatro Rui Limeira Rosal, onde se apresentou no Festival de Artes do SESC Caruaru. “Foi apenas quando comecei a me apresentar nas noites de Caruaru que conheci cantoras como Rogéria. Eu ia vê-la cantar e ficava arrebatada com a voz, a personalidade e nela como pessoa”.


Isabela Moraes no Festival de Artes do SESC Caruaru. Foto: Lucas Bezerra

Isabela conversou conosco após sua apresentação, cansada e feliz. Entre o barulho dos que estavam fora do camarim à sua espera e o silêncio dentro da sala com um espelho enorme cheio de luzes, aqueles típicos de camarim de teatro, ela rememora uma apresentação fora do Nordeste. “Já aconteceu de fazer um show na Casa de Francisca (São Paulo, capital) e ser completamente lotado, ter pessoas brigando na porta para entra E, de repente, você fazer um show em Caruaru, na sua cidade, e não ter a casa cheia”. Perguntada sobre o motivo, a resposta veio sem hesitar: “Isso acontece em todos os lugares que têm seus artistas. A cidade em si nem fica a par dos artistas grandiosos que tem”. E arrematou: “é uma coisa cultural”, citando amigos do Sudeste que também precisam sair de seus estados para serem reconhecidos em seus estados de origem.


“É uma coisa cultural”... “É uma coisa cultural”... “É uma coisa cultural”... É mesmo uma coisa cultural? Não era de se esperar que a recepção de sua própria terra natal fosse mais acolhedora, mais atrativa? Sob muitos aspectos, desbravar a música profissionalmente é sempre como enveredar por terras desconhecidas, e não apenas por ser uma trajetória que cada artista precisa lutar para construir a seu modo. A dificuldade de despontar nas rádios e no gosto do público em geral se torna ainda maior quando, apesar de tudo, não se é visto. Na era do streaming, mídia social, trends, cada frase dos posts, reels, e matérias publicadas é milimetricamente calibrada para um algoritmo que atraia a atenção do público: mais uma vez, quem já tem uma visibilidade consolidada lá fora sai na dianteira.


Naquela noite, o palco escuro intensificava o holofote sobre Isabela sozinha no palco com seu guitarrista, iluminando uma plateia que, talvez, esteja vendo nela sua primeira referência feminina. Anos atrás foi assim para Bianca Mota, artista da mais nova geração caruaruense. “Bem, eu conheci o trabalho de Isabela Moraes bem antes dela ficar conhecida pela região e eu a admirava demais. A música dela, as coisas que ela escreve. Acho que posso citar ela como minha primeira influência daqui”.


Para Bianca, fazer música não é simples, "ainda mais quando você escolhe trabalhar com outro ritmo dentro da Capital do Forró”, explica ao lado de seu violãozinho de estimação. Ultimamente, ela tem estado dividida entre os preparativos para o seu primeiro álbum e seu trabalho paralelo como programadora. “Como eu sou musicista, tenho a visão de que a mulher é muito mais bem aceita no palco enquanto protagonista. Então, quando ela tá ali no meio e cantando, ela é mais bem vista”. Bianca diz, serena, mas séria, que amaria viver de suas canções, mas, em meio às andanças para conciliar várias responsabilidades, o caminho artístico por vezes é tortuoso. “O que eu acho que mais se peca na cidade é a questão das mulheres musicistas. Eu toco teclado, toco bateria, toco violão, mas a gente não vê mulheres nas bandas por aqui. é onde eu acho que há a maior falta”.


Bianca Mota durante entrevista. Foto: Fabrício Magno.

Essa sensação que Bianca tem é comprovada com dados estatísticos e vão bem além de Caruaru. Em 2021, foi feita uma apuração através de um questionário da União Brasileira de Compositores (UBC), em que dentre 252 compositoras, intérpretes, musicistas, produtoras fonográficas e técnicas associadas e não associadas à entidade, 79% delas afirmaram já terem sido discriminadas em sua área de atuação por serem mulheres. A realidade é que falar sobre mulheres que fazem música em Pernambuco sem levar em conta questões como machismo, xenofobia e racismo é como fazer uma visita a Caruaru em junho e não participar das festas juninas: um cenário incompleto. Tanto que o próprio São João é um grande reflexo do problema que se entranha por entre o gosto das comidas de milho e a alegria dos polos de festejos.




Por: Fabrício Magno, Lethycya Lima, Lucas Bezerra, Mikaelly Lira e Un Hee Martha


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